sábado, 29 de julho de 2017

Um desabafo sobre suicído e a intolerância à dor

"No Japão os objetos quebrados são reparados com ouro. Aquela marca passa a ser vista como um pedaço único e valioso da história do objeto, que é adicionada à sua beleza."


Essa semana eu soube de um suicídio.
Dentre tantos suicídios (e pessoas com pensamentos suicidas) que já ouvi, na clínica ou na vida, esse foi o que mais me marcou.
Não, eu não conhecia a pessoa pessoalmente. Mas ao meu olhar (e talvez por conta das minhas próprias idealizações) era uma pessoa iluminada.

Como psicoterapeuta esse tema é algo que preciso lidar, algumas vezes. Compreendo os inúmeros distúrbios emocionais e psíquicos que muitas pessoas carregam. Fora da clínica, quando eu escuto sobre o suicídio de um cantor de banda ou um ator famoso, eu logo penso, buscando uma razão, que a vida pública deve ser difícil, que essa exigência da figura pública, da persona, pode tornar tudo meio vazio, e coisas assim...Mas e o suicido de um "mestre"?

Ele não se intitulava mestre espiritual até onde eu sei, mas era. Ministrava ensinamentos sobre meditação, budismo, yoga, no mundo inteiro. Também era Psicoterapeuta e dava ensinamentos sobre Jung, juntando o olhar da psicologia analítica com as práticas orientais, assim como eu. Eu acompanhava as palestras dele online, escutava seus áudios, via seus vídeos, e me inspirava.
Assim como ele me inspirou deve ter inspirado milhares de pessoas com o seu trabalho. Casado e pai de dois filhos. Se matou.

Uma inquietação imensa nasceu dentro de mim...
Não é fácil lidar com a ideia do suicídio. Mais difícil ainda lidar com essa ideia vinda de uma pessoa que, na minha idealização, era uma pessoa tão conectada com o sentido da vida.
E dessa inquietação surgiu um questionamento que só agora consigo colocar em palavras:
Será que estar conectado com o sentido da vida, do universo, basta diante da dor que precisamos lidar todos os dias?

É muito bonito dizer que somos pessoas alegres, leves, que meditamos e que percebemos a beleza da vida, que estamos integrados com o universo...
Mas e a sombra? Você está olhando pra ela? Mas e a sua dor? Onde ela está?

Todos temos dores profundas, cicatrizes profundas, e a nossa sociedade transforma elas em segredo.
Ninguém fala sobre elas. Você as esconde atrás de sorrisos e posts no facebook. Ou, quem sabe, atrás de meditações e uma vida espiritualizada. Criando uma nova persona, se distanciando mais ainda da sombra, da dor. Fugindo.
Tudo que fazemos sempre é fugir da dor.
Todas as compulsões desenfreadas, as ansiedades, as carências exageradas, as dependências...tudo isso são fugas da dor.

Já ouvi, em uma conversa informal, que o pensamento suicida vem de um sentimento de desconexão total, "você não se sente conectado com nada, nem consigo mesmo", a pessoa falou. A questão é que, se existe uma dor visceral em você e você foge dela por toda a vida, mas ela continua ali, pulsando lá no fundo e volta e meia vindo à tona, talvez, o inconsciente comece a anestesiar tudo, numa fuga desesperada dessa dor.

A Clarissa Pinkola, em seu livro "Mulheres que correm com os Lobos", chamou isso de "zona morta" da psique. Quando uma pessoa tem uma dor profunda da qual ela foge, o inconsciente começa a criar barreiras de proteção em volta dessa dor, anestesiando tudo à sua volta. Você vai se desconectando de coisas que possam te lembrar, ou te fazer de alguma forma entrar em contato com a dor...dependendo da proporção você pode acabar mesmo por se desconectar de tudo.

Então a única solução é parar de fugir.
A única solução é se conectar com a dor em si.
Abraça-la. Vivê-la totalmente. Até que se esgote ou que se acomode, como uma cicatriz se acomoda em nosso corpo, passando a fazer parte dele.
E isso nos torna mais fortes.
Quando você consegue passar por uma dor profunda e resistir, você se torna mais forte.
Mas passar não é negar.
Você muitas vezes pode viver momentos de dor, mas passar a vida negando eles emocionalmente.

Jung disse que a psicoterapia não é, nem nunca foi, um trabalho para ajudar as pessoas a se tornarem mais felizes, mas é sim um trabalho para ajudar as pessoas a lidar com suas dores. A conviver com elas.

Não, não vai passar. O seu passado não vai deixar de existir. As cicatrizes feitas por tudo que te marcou, não vão desaparecer. Mas ao invés de fugir delas, nessa compulsão incessante por tapar o "buraco da dor", podemos começar a aceita-las, convida-las para fazer parte do nosso ser, da nossa história, do nosso amadurecimento, não como uma vítima, mas como uma pessoa inteira, que como qualquer outra, possuí marcas.

Estamos tão compulsivos, por saídas, por bebidas, por prazeres, por "amores", por viagens, por objetos, por drogas, por palavras, por vidas alheias...por qualquer coisa que possa tapar o "buraco da dor", como se jogássemos ela no fundo de tudo e por cima todas essas coisas, pra soterrar a dor e nunca mais vê-la.
Só que ela é mais forte.
E enquanto não dermos as mãos pra ela, ela continuará sendo.

Eu ensino meditação aos meus pacientes e nos cursos que dou, porque acredito que é uma ferramenta incrível para acalmar a mente e para ajudar a entrar em contato com quem você realmente é, seu ser essencial, a fonte por trás dos pensamentos. É importante entendermos que não somos nossa mente, nossos pensamentos. Também não somos nossas emoções, mas elas fazem parte da gente. Todas as alegrias e dores fazem parte da gente. E elas podem ser uma ponte entre o ego e o self, isto é, entre todos os nossos "personagens" e quem realmente somos.

Precisamos nos curar dessa intolerância à dor.
Eu te garanto que, por maior que seja a sua dor, você não vai morrer se sentir.
Talvez, se não sentir...
Quando passamos por esses momentos de dor profunda morremos simbolicamente, uma parte de nós morre na dor, se transforma e renascemos fortalecidos como o mito da Fênix que morre e renasce das próprias cinzas.
Mas se passamos a vida negando uma energia tão forte, em algum momento ela pode nos engolir, como os dragões desenhados por tantos psicóticos e esquizofrênicos nos trabalhos de arteterapia...os dragões do fundo do mar, do inconsciente, que tanto tememos.

Olhe pro seu dragão. Lute com ele, até que vocês dois se tornem um. Se transforme no Dragão.
E jogue fora toda a crença de fragilidade emocional que foi imposta à você por uma sociedade doente, que precisa de pessoas frágeis pra se manter. 
Você é mais forte que isso.

Outra frase genial do Jung é: "Nada que faça parte de você pode ser mais forte do que você mesmo. Isso é uma ilusão"
A dor é sua. Ela é parte de você. Você inteiro é mais forte que ela.
Então pode dar as mãos a ela sem medo. Olhar nos olhos da dor e ouvir o que ela tem pra te dizer.
E sentir ela tão intensamente como você sentiu o dia mais feliz da sua vida.
Vamos quebrar essa ideia maniqueísta de que existe bem ou mal, certo ou errado, pois desde muito tempo isso só nos atrapalha.
A vida é. O universo existe com suas supernovas e seus buracos negros. 
Criação e destruição, luz e sombra: precisa-se carregar os dois dentro de si para ser inteiro.
Quando pararmos de negar a dor, e a morte (no seu sentido literal e simbólico), saberemos como lidar melhor com elas.

3 comentários:

  1. Espetacular.😍 Minúsculas de tornam minhas dores, com o prazer e alegria que sinto ao te ler. Filha minha. Cada dia tornando-se mais e melhor. Nessa nossa missão de Cura. Com nossas cicatrizes de "ouro" reluzindo. Te Amo!❤

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  2. Boa tarde, Vanessa!
    Grato pela expressão de sua atitude de integração do seu prazer de viver com suas dores.
    A dor em si não existe, ela é ausencia de algo, é o efeito dessa ausencia.

    Quando estamos conectados com nosso Self, ao menos com o caminho que leva ao Self e esse caminho de Si somente cada um reconhece, então, quanto mais nos integramos mais e mais a dor diminuiu e começamos a perceber que a dor, a perda, a separação, a não-realização são a mesma coisa, ausencia de integração, de união interior, e essa união é impossivel de ser completa enquanto percebermos a dor e o amor como duas coisas.

    O amor tem dores, e a dor tem amores.
    É nossa maneira de ver separado que traz nossa infelicidade de viver.

    Quando começamos a integrar e a aceitar e deixar que as coisas sejam como elas são porque nada fica, aqui tudo passa... aqui, esse Mundo... que muda e nos chama à mudança, a cada instante.

    A dor seria o sintoma de nossa resistencia.
    A dor é amiga porque denuncia nossa vontade de resistir ao eterno mudar do Tempo, agora é, daqui a pouco, já era. E mais um pouco, já será de novo.

    É nossa consciencia de nós mesmos e de como a vida funciona que nos faz sofrer a dor que todos carregamos como uma coleção de coisas passadas no tempo e presentes na alma.

    Quando o ser humano apreender a fluir com o AGORA e deixar o tempo psicologico morrer... nesse dia a dor vai começar a morrer e no lugar dela vai nascer a tolerancia à dor... que nos educa que sofrer é uma opção, e dor é uma maneira de lidar com um amor que não se amou.
    Quando amamos, não existe dor.
    Mas existem "dores de amor", mas é diferente.

    Existe sim, ausencia de comunicação de amor, e a ausencia de amor interpretamos como dor.
    A dor nunca é natureza, é reação de uma ausencia de um elemento em nossa psique.

    O Amor sim é uma natureza porque quando amamos nos sentimos felizes, não por fora, mas por dentro.
    Onde há Amor Aberto ao prazer e ao sofrimento a dor é uma possibilidade, e não uma experiencia.

    Sofre dor quem quer sofrer dores.
    Sofre amor quem não consegue amar e ser amado.

    Enfim, a essencia do ser humano é o amor, a dor é quando nos separamos dessa essencia.

    Estamos todos separados, em maior ou menor grau... mas um dia...
    seremos uma raça integrada e então o AMOR enxugará as lágrimas de todos os rostos, e a dor e o sofrimento serão coisas passadas.

    E o nosso amor será o PRESENTE.

    Sementeiro do Infinito

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    1. Olá obrigada pelo texto! Concordo com quase tudo que voce escreveu, porém acho que você não entendeu o que eu quis dizer...em nenhum momento eu afirmei ter prazer em conviver com a dor, o que eu procuro mostrar no meu texto é que não podemos negar a dor, assim como não podemos negar a SOMBRA. Tudo que negamos ou reprimimos fica "sombrio" em nosso inconsciente, toma força sem que a gente nem mesmo perceba. Por isso precisamos olhar, e aprender a lidar.
      Concordo plenamente que nossa essência é Amor, mas infelizmente ainda não estamos em contato pleno com nossa essência, com nosso Self, e para chegar até lá é preciso muitas vezes passar pela dor e não negá-la. Olhar para a dor e aprender a lidar com a dor e a sombra é parte do processo e enquanto negamos, não "atravessamos" essa etapa.
      Como o próprio JUNG escreveu: "Não há despertar de consciência sem dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma. Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão."

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