segunda-feira, 24 de julho de 2023

Barbie fora da caixa


Quem brincou de Barbie sabe, o quanto de verdades surgiam naquelas brincadeiras, que muitas vezes viraram segredos entre amigas, pois os desejos inconscientes de nós crianças pulsavam através daquelas bonecas e daquele mundo mágico. Tudo era permitido ali naquele momento onde a imaginação podia se expressar livremente, sem a censura do mundo dos adultos.

Confesso que fui ver o filme desconfiada, primeiro porque sei que a indústria lucra horrores com a Barbie se "redimindo" com as mulheres e segundo porque eu amava a Barbie e o tanto quanto ela me ajudou a me expressar ela me atrapalhou com a minha auto estima, principalmente em relação ao meu corpo. Porém o filme me surpreendeu positivamente! De uma forma debochada e hilária o filme brinca falando a verdade, assim como nós fazíamos nas nossas brincadeiras de criança.

O filme mostra tantas questões absurdas que nós mulheres sofremos num sistema patriarcal de uma forma tão caricata, debochada e às vezes até óbvia, que nos leva a um "riso de nervoso" porque pensamos: "Caramba... e não é que é assim mesmo?" O óbvio precisa sim ser dito.

O ápice do filme pra mim é o discurso da personagem Glória, que sinceramente eu não acredito que exista alguma mulher consciente neste planeta que não tenha se identificado e compreendido exatamente o sentimento dela e da Barbie naquele momento. "Nunca ser o suficiente". O quanto eu escuto isso das mulheres na clínica!

E o discurso consciente liberta da "lavagem cerebral", da anestesia e cegueira de concordar com um sistema que tanto nos fez e nos faz mal! E faz isso com uns textos até óbvios. Mas novamente, o óbvio precisa ser dito, porque para quem está em estado de inconsciência e anestesia, o óbvio não é óbvio.  A consciência liberta.

Realmente o filme tem muitos tons de rosa e de exagero, alguns homens podem se incomodar inclusive, com a forma caricata que o filme retrata a masculinidade tóxica e frágil. E eu entendo. E talvez seja mesmo o propósito. Talvez seja uma forma de mostrar, também para os homens, que o sistema patriarcal prejudica na verdade à todos, de alguma forma. Na minha opinião, esse tom caricato condiz perfeitamente com a ideia do "brincar de boneca", e foi uma forma inteligentíssima de ressaltar, para qualquer um entender, os problemas do patriarcado.

A  maior surpresa positiva pra mim, foi o desfecho da "guerra entre as Barbies e Kens": - Ninguém tem que dominar  a Barbieland.  Vamos trabalhar juntos? - Isso é feminismo. Ao contrário do que muitos homens e mulheres pensam.

Independente do lucro que a Matel e todos os envolvidos estão tendo com isso, é melhor que lucrem trazendo temas de importante reflexão do que com filmes vazios. Greta Gerwig está de parabéns! Definitivamente vale à pena ver Barbie!

E procure ver com a mente aberta, principalmente se você for um homem.

Saia da caixa!

Que estejamos dispostos a encontrar outros mundos, e principalmente, a imaginar outras formas de nos organizar e nos relacionar como indivíduos em sociedade. 

 

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Como sustentar o ego diante da angustia do desconhecido?

O nosso ego é construido por "certezas". Supostas, ilusórias, pois nada é certo na vida, nenhuma verdade é absoluta. A vida é impermanência e toda conclusão surge de uma hipótese construída a partir de um ponto de vista humano. Cada ser é unico. Logo, existem 8 bilhões de verdades.

Mas o nosso ego nao suporta essa realidade. Ele se constroí introjetando cada fala de nossos pais, cada regra de conduta social ou religiosa, cada julgamento que ouvimos das pessoas que amamos e confiamos... como certezas. E essas certezas formam quem somos e como vemos e lidamos com o mundo. 

Quando amadurecemos e começamos a questionar quem somos nós para além do que nos foi dado, começamos a questionar essas supostas certezas e isso é maravilhoso, pois é aí que começamos a ampliar a consciencia  e reconhecer um eu mais profundo e genuíno. Porem o problema é que a certeza é o material principal que nosso ego utiliza para suas construções. Ele nao sabe fazer de outro jeito, sem elas ele se sente frágil e vulnerável. Logo passamos a buscar novas certezas, duras como pedras. 

Nos identificamos, não mais com os pais talvez, mas com politicas(os), filosofas(os), escritoras(os), cientistas, padres, mestras... E acabamos por construir novos muros inflexíveis de verdades. Cada vez mais duros. Cada vez mais inflexíveis. Pois cada vez que desconstruímos uma certeza o ego teme mais ainda o vazio.

É por isso que encarar a morte ou mesmo pensar sobre ela se torna tao angustiante e destruidor. Quase ninguém tem uma verdade absoluta para a morte. As pessoas tem suas crenças, mas não existe um consenso humano sobre essa travessia desconhecida. E é aí que encaramos a incerteza, o vazio, o medo da aniquilação, a angustia de se perguntar "Onde está o ego?" "Pra onde aquela pessoa foi?" "Será que a verei de novo?" "Pra onde eu vou?"  E isso tudo vale também para as pequenas mortes simbólicas..."Pra onde eu vou agora nesse momento novo?" "Quem sou eu quando a minha vida muda profundamente?"

O ego nao é tudo que somos. É apenas a parte consciente. Mas o inconsciente é como a morte, um mistério desconhecido, e nos dá um medo imenso e angustia enorme olhar pra ele e ser olhado por ele, (como nos lembra Nietzsche, quando olhamos pro abismo o abismo nos olha de volta). Porem é somente revelando e sendo revelado pelo desconhecido é que nos libertaremos das prisões que o ego nos encerra. 

É preciso sustentar a angustia diante do desconhecido.

Como? É preciso sustentar o vazio. O abismo. E o olhar do abismo. O nada que precede um novo saber, um novo momento. É preciso continuar. Dar passos, um de cada vez, em direção ao breu. Nem sempre sabemos o que virá, e podemos não saber. Ás vezes é até necessário não saber para poder continuar.

Só pode existir o novo a partir de espaços abertos, vazios dispostos a serem preenchidos. Senão estaremos para sempre fadados a sofrer, cada vez com mais intensidade, de ansiedades e pânicos, de burn outs e depressões diante da tentativa, sempre falha, de segurar o movimento natural da vida.

terça-feira, 29 de março de 2022

Traumas, sonhos e o mundo interior

Porque será que, às vezes, sentimos como se existissem “partes” nossas que parecem trabalhar "contra" a gente, atrapalhando o que queremos alcançar ou a nossa evolução e transformação pessoal?


Essa sensação é real e descrita por muitas pessoas durante o processo terapêutico como uma luta interior, na qual parece que sempre tem uma parte que busca a mudança enquanto outra resiste, apegada a hábitos e comportamentos nocivos. Um dos motivos possíveis para isso acontecer é a forma como a nossa psique é afetada por um trauma.

Situações traumáticas, principalmente as que acontecem em fases da vida em que a nossa psique não tem "ferramentas" suficientes para lidar com a situação e o nosso ego não está pronto para integrar as emoções que surgem, geram uma fragmentação na psique. Dessa fragmentação podem surgir defesas que fazem de tudo para que o trauma não seja revivido. Isto é, partes que fazem de tudo para proteger o ego de entrar em contato novamente com aquelas questões e emoções. 

Só que essas "partes" são arcaicas, primitivas, pouco desenvolvidas, pois por não fazerem parte do todo da nossa psique, não puderam amadurecer. E assim como uma criança indefesa, elas podem interpretar tudo como um ameaça, elas podem entender erroneamente qualquer mudança ou nova vida como uma ameaça para o ego. Ela quer deixar a gente o mais "protegido" possível, e se para isso for preciso nos machucar de outras formas, ela o faz.

Na psicologia analítica entende-se que a busca pela integração psíquica é o objetivo de todo o processo terapêutico, e segundo Jung, nossa psique naturalmente busca por essa integração. Porém nesses casos a integração soa como algo terrível ao ego da pessoa, pois integrar todos os conteúdos seria consequentemente integrar o trauma, quer dizer, trazer para o consciente o afeto contido no trauma e reprimido por tanto tempo. Por isso a resistência ao processo terapêutico pode ser muito maior, sendo necessário um processo de circumbulação, ou seja, circular o tema do trauma aos poucos para preparar a consciência para lidar com ele. Para só então, depois que as defesas protetoras “abaixarem a guarda”, o processo de integração possa ocorrer.

No livro “O mundo Interior do Trauma” de Donald Kalsched, o autor Junguiano, analisa os sonhos de seus pacientes que sofreram traumas e reconhece arquétipos semelhantes nesses sonhos. Ele mapeia essas figuras que representam normalmente um arquétipo de protetor e agressor simultaneamente, que surge na psique traumatizada. Através da análise dos sonhos ele consegue entender muito melhor o funcionamento deste arquétipo, que muitas vezes é um personagem interior recorrente, que aparece de diferentes formas nos sonhos e nas fantasias da pessoa que sofreu um trauma.


“A defesa primitiva não aprende nada a respeito do perigo realista(...)ela funciona no nível mágico da consciência, com o mesmo nível de conscientização que tinha quando o trauma ou traumas originais ocorreram. Cada nova oportunidade de vida é encarada como uma ameaça perigosa ou retraumatização e é, portanto, atacada. Dessa maneira as defesas arcaicas se tornam forças antivida(...)” 
(Donald Kalsched - “O mundo Interior do Trauma”)

Clarissa Pinkola Estes no livro, “Mulheres que correm com os lobos”, também aborda o tema dos sonhos em diversos momentos e nos fala sobre o aparecimento recorrente nos sonhos de inúmeras mulheres de uma figura que ela denomina “o homem sinistro”. Este homem normalmente aparece nos sonhos perseguindo, ameaçando, destruindo ou agredindo de alguma forma o ego da sonhadora. Em outras vezes aparece como protetor, guarda, segurança, e outras figuras que representam proteção. E algumas vezes a figura representa ambas as atitudes no mesmo sonho.

Segundo Donald Kalsched, este seria o arquétipo presente na psique traumatizada que faz essa dupla função de protetor e agressor, pois para essa parte da psique qualquer agressão interna é válida para que o trauma “externo” não seja revivido, de fato, na realidade.


Qual seria então o caminho para quem sofreu traumas?

A Terapia. Principalmente.

No livro o autor apresenta seus casos clínicos e descreve as evoluções que ocorrem no processo de seus pacientes através da fala e da análise de sonhos, são evoluções concretas e impressionantes. Os sonhos contêm informações riquíssimas sobre o nosso inconsciente, nos possibilitando acessar emoções e promovendo questionamentos que, muitas vezes, não teríamos acesso sem analisar os sonhos. Eles são portais para esse mundo interior. É claro que, em alguns casos, o processo terapêutico regride para depois evoluir, em outros paralisa. Não existe uma "receita de bolo", pois em cada ser humano habita um universo.

Porém eu não conheço nenhuma outra forma, além da terapia, de mergulhar nesse universo interno, mapear e conhecer essas partes esquecidas de nós mesmos para trazê-las para luz da consciência e consequentemente para integração. Precisamos abraçar essas sombras, conhece-las e torna-las novamente partes integrantes do todo psíquico. Não é um caminho possível de se fazer sozinho. Então busque ajuda de um profissional que você confie. E confie também em você mesmo e no processo, com paciência e acolhimento, porque ele pode ser longo. Um passo de cada vez.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

O sentido NA vida

 Depois de ver a animação "Soul" da Pixar fiquei inspirada para escrever sobre algo que eu já estava com vontade de escrever há muito tempo: a busca pelo sentido da vida. Por sincronicidade (porque para uma Junguiana coincidência não existe...) estou terminando de ler o livro "Em busca do sentido" de Viktor Frankl, que também me trouxe diversas reflexões sobre o assunto. 

É muito comum ouvirmos na clínica o tema do sentido. Muitas pessoas se dizem perdidas, por não encontrar "um sentido maior" na vida e se vêem em uma busca constante que muitas vezes parece não ter fim. Mas o que essas pessoas estão buscando, afinal? O que é de fato, esse tal "sentido"? Como percebê-lo? Como nomeá-lo? Como segurá-lo para que ele não escape? E será que nossa vida tem um único sentido? Será mesmo que uma vida inteira pode se resumir em um único sentido, como uma profissão, um amor ou um chamado espiritual? São muitas perguntas sem respostas que indicam apenas que, no fundo, nós não sabemos o que estamos buscando. E é por isso que fica tão difícil encontrar.

A felicidade é uma ideia que nos é vendida, normalmente atrelada a importância de "ter". O "ser" só aparece vínculado ao status, as pessoas são cargos, profissões, títulos, dificilmente elas mesmas. Hoje um pedaço de papel move o mundo, e se tornou "o sentido" de muitos. O que esse pedaço de papel pode comprar, roupas, carros, joias, passeios para mostrar no instagram...seria esse o sentido da vida? O problema é que tudo isso é perecível, tudo acaba, até o nosso corpo um dia se desfaz. Como posso encontrar um sentido maior em algo que não permanece?

Carl Gustav Jung também falou muito sobre a importância do sentido, porém em sua teoria esse sentido é algo muito maior e subjetivo, algo que vem de dentro da nossa alma. Jung nos atenta para a importância de experimentar uma vida simbólica, porque é do símbolo que surgem os sentidos mais amplos e profundos. A vida racional demais não se expande, ele diz que é impossível expandir algo a partir do que esse algo já é, por isso precisamos do novo para expandir, precisamos das linhas "não racionais" para expandir a nossa mente racional, e por isso o contato com o simbólico é fundamental no processo de autoconhecimento e expansão da mente.

"Somente a vida simbólica pode expressar a necessidade da alma – a necessidade diária da alma, não se esqueça. E pelo fato de as pessoas não terem isso, não conseguem sair dessa roda viva, dessa vida assustadora, maçante e dessa rotina banal onde são “nada senão”." (C.G Jung)

Ao incluir na vida a perspectiva do simbólico, começamos a ver além do banal, além do racional. Começamos a descobrir partes de nós mesmos nunca antes vistas e um universo inteiro e intrigante a ser desvendado. Encontramos não um, mas diversos sentidos em cada símbolo que acessamos e esses sentidos nos ampliam e nos transformam profundamente. Descobrimos à partir do contato com o simbólico que a vida pode ser mais e maior. Não é à toa que desde sempre a humanidade utiliza mitos e contos de fadas para expressar seus comportamentos e transmitir ensinamentos, pois é a linguagem que nos toca. 

Segundo estudos recentes da neurociência o nosso cérebro aprende algo muito mais rápido, quando aquela informação acessa alguma lembrança e/ou nos desperta alguma emoção. O que nos toca, nos transforma. Para dar sentido é preciso sentir. Por muitos anos nos vemos presos em emaranhados de regras e repressões sociais, que nos dificultam a liberdade do sentir. A hipervalorização da mente racional e a lógica capitalista de aceleração e produção constante, nos leva a um distanciamento enorme de nós mesmos, um abismo entre a mente racional e o Self (nossa natureza mais profunda). Como remendar esse rasgo? Abandonamos os momentos de contemplação, e é apenas nestes que acessamos um sentir mais verdadeiro e profundo.

Na animação "Soul" vemos um limbo cheio de almas perdidas de si, obcecadas com determinados pensamentos ou objetivos mundanos, que a consumiram a ponto de se esquecerem de quem são. Uma metáfora clara para as patologias que dominam nosso tempo: A ansiedade e a depressão e suas diversas formas e sintomas. São pessoas que se afastam cada vez mais de si mesmas, da sua natureza, dos seus propósitos mais profundos...do seu sentido. A busca obcecada por algo que acreditamos ser "um sentido de vida" pode causar a perda total do real sentido.


Atualmente somos bombardeados com a ideia de "propósito de vida", "seguir os seus dons", "se reiventar", "faça você mesmo", e por aí vai...Coachs que prometem mudar a sua vida em 10 encontros como num passe de mágica e afirmam que vão te ajudar a encontrar a sua direção. Será que seres tão múltiplos, com uma psique infinita teriam uma só direção? Um só propósito? Como limitar em tão pouco tempo e espaço algo que é infinito? Precisamos começar por desvincular a busca de sentido de uma ideia mercadológica, capitalista, social ou romântica. Precisamos ampliar o nosso olhar e o nosso sentir.

No livro "Em busca do sentido", Viktor Frankl compartilha sua vivência e observações em um campo de concentração nazista. Em uma das situações mais hostis que podemos imaginar para um ser humano, muitos encontram força e sentido para se manterem vivos. E pensamos "mas como eles conseguem?", o autor fala sobre como a ausência de tudo que antes tinham, faz com que as pessoas comecem a dar um valor significativo para o que resta: a própria vida e o próprio ser. 

Não que seja preciso abrir mão de tudo, mas talvez seja preciso olhar para tudo que já temos. A verdade é que não há nada para ser encontrado. A única coisa que precisamos descobrir é à nós mesmos, e isso já é muito. Quanto mais nos conhecemos, quanto mais conhecemos o funcionamento do nosso ser e da nossa mente, mais compreendemos a mágica. 

A vida é uma raridade no universo. Nós somos seres dotados de tantas capacidades mentais que nem fomos capazes de descobrir todas ainda. Inseridos em um universo o qual não conseguimos nem medir de tão imenso, e acreditamos que seja infinito, com explosões de estrelas gigantes, buracos negros que sugam galáxias inteiras pra dentro de si, caos e ordem coexistindo numa dança perfeita que permite a existência de tudo. A nossa mente criou tudo que está à nossa volta, cidades, carros, computadores, medicina, cura, doenças, guerras e amor... Somos capazes de criar qualquer coisa. Somos capazes de escolher como lidar com qualquer situação que se apresenta para nós. Somos capazes de sentir. 

O sentido de tudo isso é você quem dá.

Apenas contemple a vida e se permita sentir.

terça-feira, 28 de abril de 2020

O Valor da negativa e a Interrupção como libertação

"A atividade pura nada mais faz do que prolongar o que já existe. Só por meio da negatividade, do parar interiormente, o sujeito da ação pode dimensionar todo o espaço da contingência que escapa a uma mera atividade." (Byung-Chul Han, Sociedade do Cansaço) 

Estamos vivendo hoje uma oportunidade única de transformação em muitos níveis, internos, externos, individuais, sociais...E digo única de fato, pois é uma oportunidade nunca antes vista em nossa sociedade, pois a forma que tudo está ocorrendo carrega uma fórmula poderosa que ao meu ver não aconteceria de nenhuma outra maneira: a desvalorização do sim e a possibilidade do não. 


No livro "Sociedade do Cansaço" de Byung-Chul Han o autor nos apresenta a reflexão sobre vivermos em um momento onde a possibilidade da negativa nos é limitada e desvalorizada. Estamos escravos de uma positividade excessiva onde o valor está no "mais"; produzir mais, para ter mais, fazer mais e não parar nunca. A valorização do fazer e da quantidade de informação (ao invés da qualidade da informação) nos tornou dispersos como zumbis e escravos de nós mesmos. Mesmo que não haja ninguém nos obrigando a agir, entendemos que o valor está apenas na ação e continuamos nos obrigando à uma aceleração constante. Quando não profissional, pessoal, porque até as folgas que deveriam ser descansos, são pautadas em verbos ativos como "ver" um filme ou " ir" à algum lugar; a nossa auto imagem ficou condicionada ao fazer e dizer não à ação é quase tão mal visto quanto um crime. A pausa é proibida. 

Todo esse esquema produz uma falsa sensação de liberdade, pois acreditamos que estamos fazendo o que queremos. Queremos exceder todos os nossos limites físicos e emocionais porque "eu quero terminar a tese", "eu quero ser bem sucedida" ou "eu quero ter a melhor foto no instagram"; e não percebemos que essas não são escolhas, mas apenas reações à um sistema que exibe aceleração como sucesso e pausa como fracasso. O autor ressalta em uma passagem do livro:  "A hiperatividade é paradoxalmente uma forma extremamente passiva de fazer, que não admite mais nenhuma ação livre." Acreditamos estar ativos, porém estamos totalmente passivos diante de um sistema que domina como qualquer outro dominador: através dos nossos medos e inseguranças, através da nossa idéia de valor próprio. 


As maiores doenças dessa sociedade, a ansiedade e a depressão, só reforçam essa perspectiva. O ansioso é aquele que não consegue permitir a pausa nem na sua mente, se estiver se sentindo produtivo continua mentalmente compulsivamente produzindo em seus pensamentos; e se não estiver pior ainda, pois a compulsão soma com a culpa e a mente se agita cada vez mais. O deprimido é o que tenta dizer "não" ao "sim compulsório" desse sistema. É como se ele dissesse "eu tenho o direito de não fazer nada", mas a pressão por desempenho, externa e interna, não permite que esse processo seja tranquilo; dor e culpa o acompanham e a impossibilidade de "voltar à ativa" somada a impossibilidade, ditada por ele mesmo e pelos outros, de permanecer em pausa, só gera mais conflito, mais angústia. Como o autor fala no livro é uma doença de uma sociedade que está "em guerra consigo mesma"

Nossa potência de negar nos foi tirada. Se não temos a possibilidade da negativa como algo de valor, não temos escolhas reais. Não temos alteridade em uma sociedade que só valoriza a positividade e o sim como resposta. As últimas gerações não podem dizer não nem ao excesso e muito pelo contrário, precisam acumular tudo: experiências, coisas, pessoas...Quantas vezes eu já ouvi na clínica "parei porque fiquei doente" e até mesmo "precisei ficar doente pra poder parar." Quantos de nós já forçamos nossos limites físicos e psicológicos à ponto de adoecer em nome da produtividade, da atividade ou até mesmo do prazer?

E agora estamos doentes. Estamos todos doentes! A Terra está doente, o mundo está doente! Somos obrigados à dizer não às saídas, aos encontros, às viagens, à aceleração constante. Alguns ainda resistem à mudança querendo manter a produtividade excessiva via "Lives" no "Online"; porém não há mais como fugir da verdade: houve uma interrupção no curso "normal" das coisas. É um novo momento. Podemos parar? Devemos parar! Por quanto tempo? Só você pode saber o quanto de tempo é necessário.

A interrupção é uma possibilidade única de libertação, talvez a única possibilidade. Se a nossa mente não pode parar ela não contempla, não aprofunda, é só um pensamento atrás do outro, superficiais. Se nós não pudermos parar não há espaço para aprofundamento, não há espaço para o espírito, cada vez mais seremos semelhantes as máquinas e menos semelhantes à nós mesmos. A nossa natureza reside na profundidade do ser e apenas a meditação e a contemplação profunda pode nos permitir ouvi-la. É na pausa, no silêncio, que nos encontramos. 

Mas precisamos trabalhar, ganhar dinheiro, viver em sociedade...talvez sim. Mas será que esse momento não pode nos trazer novas possibilidades? Não seria um "ponto final" em uma frase, que nos permite respirar fundo e refletir antes de começar o próximo parágrafo? Talvez ele nos permita reescrever o próximo parágrafo e transformar o curso da história. 
Como você quer escrever o seu próximo parágrafo? 


Não responda agora! 
Pare. Respire. Medite sobre isso. 
Reação não é ação verdadeira.
Dê tempo para a resposta vir de dentro.
As ações verdadeiras não respondem à nada. 
Elas vêm de dentro.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Coringa: A sombra de todos nós


Gostaria de começar esse post dizendo que esse filme é extremamente forte e possuí diversos pontos que podem ser gatilhos para algumas pessoas. Sim precisamos falar sobre tudo isso, mas precisamos também falar com cuidado. Por esse e outros motivos eu não pretendo escrever sobre a questão psicológica do personagem e nem sobre a questão social, tão clara no filme. O que eu escrevo aqui é uma reflexão pessoal sob um olhar junguiano para você que está lendo esse blog, e também para mim mesma. Porque afinal todos nós temos sombras...
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"Eu não sou o que aconteceu comigo, eu sou o que eu escolho me tornar." (C.G Jung)

Com essa frase Jung procurava alertar à todos nós o perigo de se identificar totalmente com a sua história, com as circunstâncias de sua vida, suas dores e sofrimentos. Jung sabia que somos mais do que isso, somos mais do que  o que nos aconteceu, somos mais do que o que fizeram com a gente, e por sermos mais do que isso, temos escolha.

O filme do Coringa me fez pensar sobre a importância do processo de individuação por uma perspectiva mais profunda do que nunca, pois para ter essa escolha é preciso antes ter a consciência de que você não é apenas o seu ego, isto é, você não é apenas um produto do meio e das circunstâncias. Em resumo se você não tem consciência do Self, se você não vivencia um sentido maior do que as circunstâncias da sua vida e das suas dores, você vira um escravo da tensão entre os opostos ego versus sombra. Quanto mais o seu ego se sentir impotente, oprimido, invisível; mais a sua sombra, antes reprimida, toma conta da sua psique, dominando todo o seu ser.



Isso acontece com todos  nós. Não é à toa que uma parte de todos nós, apesar das cenas fortes de violência, continuava "torcendo" pelo Coringa. Todos nós somos oprimidos todos os dias pelo sistema em que vivemos. Uns mais, outros menos, cada um da sua maneira porque dor não se mede. Todos nós já nos sentimos humilhados, invisíveis, agredidos, abusados de alguma forma. E o mais grave é que a maioria de nós procura ignorar tudo isso o tanto quanto pode, e o nosso sistema também, calando todas as bocas seja com excessos de consumos, drogas ou medicações... O que importa é você ser funcional e voltar pra "caixinha". Sorria e responda "sim, está tudo ótimo!"

Quanta tristeza e dor está escondida por de trás das máscaras de sorrisos que todos nós vestimos todos os dias? Quanta raiva? Quantas frustrações? Quanta culpa?
Um sistema devorador e uma sociedade do espetáculo, onde todos tem que parecer "bonitos  e felizes" na foto do instagram. Não cabe tristeza no olhar. Não cabe falar de sofrimento no grupo de amigos. Não cabe gritar no trabalho que não aguenta mais a pressão. Não cabe ter raiva dos pais. Não cabe sentir dor... É tanta coisa em baixo dessa máscara que mais cedo ou mais tarde ela não aguenta, ela pesa, e cai.


Quando a sombra rompe a consciência de forma descontrolada a balança se inverte, pois o ego humilhado deseja o poder, deseja se sentir potente para compensar tanta sensação de impotência. E assim humilhamos, abusamos, julgamos, agredimos. Claro que pode não ser na mesma proporção que Arthur, o personagem do filme, mas que jogue a primeira pedra quem nunca fez isso de alguma forma. Porém isso ainda não é gritar a sua dor. Isso apenas gera mais dor, pra si e pro outro. Se o ego não estiver totalmente cindido, depois vem a culpa. E com ela mais dor não sentida. Mais grito não gritado.
É assim que vivemos.
Por isso o filme é tão pesado, porque ele é real.

A solução não é a violência.
A solução não é sorrir pra foto.
A solução também não é ir pro alto do monte meditar.
A solução está na escolha.
Mas para escolher é preciso ter consciência de quem somos.
Nós não somos apenas o que nos aconteceu.
Não somos a nossa historia de vida.
Não somos as nossas emoções nem os nossos pensamentos.
Então o que somos? Quem é você?

"Conhece a ti mesmo" algo dito há tanto tempo e que todos passam a vida evitando e fugindo até hoje. Se você se identifica com a sua dor você se torna a dor. Você precisa se lembrar que é mais do que isso. Autoconhecimento: essa é a única solução.

A identificação com a dor e o sofrimento é extremamente perigosa e ela te reduz a um estado de escravo de um ego ferido, onde você mesmo não tem escolha. Você apenas reage as situações, ou melhor, a sua dor reage as situações e não você de verdade.
A chave está em não negar nada e se você se identifica apenas com a sua dor, você nega uma grande parte de si mesmo, porque eu tenho certeza que por pior que seja a sua vida ela não pode ter sido feita unicamente de dor. Então se você se identifica só com isso você está também negando a sua totalidade.


Somos vida. E como toda a vida somos múltiplos e sempre em movimento e se somos múltiplos e nos transformamos, temos múltiplas escolhas. Quando nos identificamos com nossas emoções, nossos pensamentos, eles nos dominam e nos tornamos escravos deles.

Precisamos parar de fragmentar a vida em caixinhas de certo e errado bom ou ruim. Emoção é emoção, é energia. E deve ser sentida, olhada, compreendida, porque se for reprimida, ela explode. Precisamos fluir mais, sair da tensão entre os opostos. Julgar menos. Ouvir e ser ouvido. Acolher o outro e o mais difícil: acolher a si mesmo.

Como tantos, Arthur acreditou ter deixado de ser oprimido por um sistema para ser oprimido pela sua própria sombra. Ele não tinha escolha, porque ele não tinha consciência. Era apenas a sua dor reagindo. A consciência é chave. Inteligência emocional deveria ser algo discutido em todas as escolas. Precisamos aprender a sentir, conviver e lidar com as nossas emoções, sejam elas confortáveis ou não.

Precisamos buscar mais consciência sobre esse universo infinito que somos nós. Sem julgamentos, sem culpa, "sem caixinhas". Somos vida e toda vida é feita de maravilhas e horrores. Quando será que vamos parar de negar isso?

Todos nós, assim como Arthur, somos capazes de amar e de matar, todo ser humano é. Não adianta projetar os aspectos destrutivos de nós mesmos em figuras externas como o demônio ou "espíritos ruins", ou simplesmente culpar os nossos pais ou a política... afinal fazemos isso há tantos e tantos anos e só serviu para nos tornarmos mais inconscientes de quem somos. O potencial de vida e de morte mora dentro de cada um de nós. Estamos matando as florestas, os animais, o planeta, todos os dias. Estamos matando vida por desejos do ego. No fundo, no fundo, não é a mesma coisa?
E você? Onde você está destruindo a sua energia vital por desejos do seu ego?




Somos luz e sombra. Talvez ao parar de negar sempre um dos lados, saindo dessa oscilação entre opostos, poderemos nos tornar inteiros e fazer algo útil com tanta energia em potencial!

Essa é a escolha que temos todos os dias: Nos reduzir à um produto do meio, à um resultado dos acontecimentos, identificado com suas emoções e escravo delas. Ou nos reconhecer como vida, pulsante e fluída, e direcionar o curso dessa energia de forma consciente para onde for de nossa vontade.

Na minha opinião esse filme nos lembra da necessidade de sentirmos nossas dores, e de muitas vezes gritarmos nossas dores sim! De não sorrir nos dias em que estivermos tristes. De amar nossas tristezas assim como nossas alegrias porque ambas formam quem somos. De olhar profundamente para a nossas sombras e abraçá-las, para que não aconteça delas um dia nos dominarem e nos levarem a atos destrutivos para nós mesmos ou para outros. De usar a raiva como motor de revolução.
E em um sistema que se sustenta às custas de nossos medos e inseguranças, criar mais medo e insegurança através da violência, consigo mesmo e com o outro, é apenas reforçar o mesmo sistema.
Amar ao outro e a si mesmo nunca foi tão revolucionário!
Arthur não tinha consciência de nada disso. Mas você tem.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Equilíbrio: como lidar com a tensão dos opostos?

Você já parou pra pensar o quanto a nossa mente está acostumada a polarizar as coisas? Fomos criados em cima de conceitos maniqueístas como bom e mal, certo ou errado, bonito ou feio, milagre ou pecado, altruísmo ou egoísmo, (eu podia continuar essa lista infinitamente) e esquecemos que entre esses pólos existe um espectro gigantesco que condiz, na verdade, muito mais com a realidade das coisas como elas são.


Uma pessoa nunca é totalmente boa nem totalmente má. Isso simplesmente não existe. Até Hittler amava alguém. Até Jesus e Buda magoaram alguém. Uma situação ou ação não pode ser totalmente certa ou errada, isso é impossível na realidade porque o certo ou errado estão atrelados ao olhar de alguém e esse olhar depende do contexto em que esse alguem está inserido.

Com certeza aqui no ocidente seria muito errado um homem obrigar uma mulher a sair na rua com seu cabelo coberto por um pano, porém no contexto muçulmano o uso da burca é considerado correto pois faz parte da religião e da cultura desse povo. Há alguns nem tantos anos atrás meninas casavam com 15 anos, e isso era o certo, hoje isso seria considerado um absurdo. Nos países onde houveram guerras jovens meninos eram obrigados a abandonar suas vidas e seus estudos para ir para um campo de batalha matar uns aos outros...isso é certo? Para alguns pontos de vista sim.

Não vou aprofundar aqui nessas questões apenas quero trazer a reflexão de que o certo e o errado, o bem e o mal, mudam dependendo do contexto. O que é certo pra você? O que te faz bem? O que te faz mal? Isso é que é importante ser mantido e defendido, independente do contexto social. Porém as pessoas parecem esquecer disso procurando regras e respostas do lado de fora, na vida do outro, nas opiniões do outro, nas religiões e dogmas...e você? O que você realmente pensa ou sente? Qual é o medo de assumirmos a nossa verdade? A responsabilidade de escolher de acordo com a nossa própria moral, e não a de fora, nos assuta. E alguns vivem tão submersos em regras e padrões externos que não sabem nem mesmo o que realmente pensam ou acreditam.

"Somos nossas escolhas"

Além disso conforme falamos antes, existem milhões de pontinhos entre um pólo e outro e estar polarizado atrapalha e muito as nossas vidas, tenho percebido que a polarização é algo mais comum do que se imagina, e muito adoecedor. Vejo casos de pessoas que sempre foram passivas em suas vidas, se sentindo invadidas pelo outro e sem conseguir colocar limites. De repente essa mesma pessoa começa a ser reativa, brigar e "repelir" todos a sua volta. Pessoas que eram muito frias em suas relações e ao se abrir para as emoções se entregam para uma paixão avassaladora. Pessoas que são muito religiosas e se decepcionam de alguma forma com sua religião e se desconectam totalmente do seu lado espiritual, do sentido de transcendente.

Pegando um exemplo social, vivemos em uma sociedade patriarcal que sempre reprimiu a energia feminina primordial, e agora vemos o ínicio de um resgate maravilhoso do sagrado feminino, porém muitos diante desse resgate começam a "demonizar" o mascuino primordial como se ele também não fosse uma energia sagrada e tão importante quanto a energia feminina. Até porque nenhum ser no universo existe sem as duas energias dentro de si. Em resumo estamos sempre oscilando de um pólo para o outro, tentando muitas vezes compensar "o tempo perdido" de quando estávamos no outro oposto, e isso está longe de ser saudável em qualquer que seja o aspecto. Desequilíbrio é sempre adoecedor. 


Existe um enorme espaço entre repelir e aceitar tudo: Você pode colocar os seus limites para outro de forma clara e continuar dando e recebendo afeto.
Existe um enorme espaço entre "vestir uma armadura" e "ser uma esponja": Você pode manter a sua individualidade dentro de um relacionamento sem ser egoísta. Você pode trocar experiências com o outro sem precisar se tornar o outro.
Existe um enorme espaço entre a descrença e a fé cega: Você pode ter fé sem ficar paralisado esperando que um deus realize seus sonhos e culpando ele por não realizar. Você pode saber que você é o responsável pela sua vida e pelas suas escolhas, mas acreditar que o universo é vivo, que a natureza é viva e existe um fluxo de sabedoria divina maior do que nos que nos auxilia em nossos processos.

Porque estamos tão desequilibrados oscilando nessa tensão entre pontos distantes ao invés de olhar para todo o caminho que existe entre eles? Porque buscamos tanto do lado de fora as respostas que só nós mesmos podemos nos dar? Crescemos assim nos distanciando de nós mesmos e sendo bombardeados por essas regras maniqueísta e esquecemos que dentro de nós é onde mora o equilíbrio. Um equilíbrio que é seu e diferente de todos os outros. Não tem regra, não tem padrão.




O equilíbrio não é um ponto exato no meio do caminho entre essas coisas que falamos, mas sim uma forma fluída de viver se relacionando de forma consciente com as polaridades que existem em nós. Esse "ponto de equilíbrio" oscila e essa fluidez é própria de cada um, única, e não é olhando pro outro ou procurando uma regrinha que você vai descobrir, é olhando pra dentro de si. É compreendendo como o seu ser fluí. O que é natural pra você? Segundo Jung nós nos esforçamos demais para adoecer e nos desequilibrar, porque o nosso corpo, a nossa psique, tende ao nosso ponto natural de equilibrio. Se pararmos pra pensar nisso, veremos que passamos a vida nos esforçando para corresponder a padrões e exigências que estão do lado de fora...pare de se esforçar, olhe pra dentro de você através de uma meditação, de uma terapia, ou simplesmente de momentos de pausa, silêncio e respiração consciente. Sinta: quem é você de verdade? Qual o seu ritmo natural interno? Como você deseja fluir no mundo?

terça-feira, 28 de maio de 2019

A Sombra do Amor

"Onde há desejo de poder não há amor.
E onde há amor não há desejo de poder.
Um é a sombra do outro." (Carl Gustav Jung)


Uma das grandes verdades escritas por Jung me faz refletir profundamente sobre os relacionamentos humanos. O poder é Yang. O amor é Yin. Quando falo sobre Yin e Yang me refiro as energias primordias que existem dentro de nós e em tudo que há no universo, segundo a tradição chinesa. Yang é o masculino arquetípico primordial e Yin o feminino arquetípico primordial. As duas energias juntas e em movimento formam tudo que existe.

A questão é: O desejo de poder vem da energia masculina primordial e numa sociedade totalmente patriarcal que exalta o masculino dentro de todos os seres, como podemos não ter desejo de poder? E se todos temos, onde está o amor?

Nesse momento difícil da historia do Brasil, falamos do poder como algo sombrio, mas talvez quem esteja na sombra seja na verdade o amor, pois o desejo de poder está bem consciente, atropelando tudo e todos. Será que somos capazes de amar mesmo aqueles que são diferentes de nós? Será que ao menos sabemos o que é amor?


Com o amor na sombra podemos facilmente esquecer como é senti-lo, o que ele de fato significa, e começar a confundi-lo com posse, com paixão e obsessão. Com o amor na sombra podemos esquecer de doar, ou às vezes para aqueles que o doar é natural começam a receber tão pouco em troca que a balança quebra e se esgotam. A sensação de injustiça toma conta e a raiva prevalesce.
Com o amor na sombra até mesmo aqueles seres que nasceram pra amar e doar se esgotam, sua luz se apaga e eles se endurecem.

Com o amor na sombra confundimos entrega com "ser trouxa", limites com "joguinhos de poder", diálogo com competição e justiça com ódio. Não está claro ainda que dessa forma não chegaremos a lugar nenhum? Apenas nos afundaremos mais no que há de mais negro e denso na alma humana...

Jung também disse: " Quanto maior a luz maior a sombra" E não há no universo ser mais iluminado e mais sombrio do que o homem. Somos nossos próprios anjos e nossos próprios demônios. Cabe a nós escolher como equilibrar essa balança. Enquanto a nossa ânsia for pelo poder sobre o outro, seja quem for você, seja quem for esse outro, nada vai mudar.


Não se resolve a sua submissão submentendo o outro. Se resolve a sua submissão com amor. Como assim? Se amando o suficiente para nunca mais se submeter. Amando o outro o suficiente para ajudá-lo a se transformar, caso ele peça e deseje, ou para colocar um limite claro e tirá-lo da sua vida porque não podemos ajudar quem não quer ser ajudado.
Colocar limites é também um ato de amor, com você mesmo e com o outro. Manter ambos presos em uma relação destrutiva, seja pelo motivo que for, é jogo de poder.

Socialmente estamos todos presos em relações destrutivas, tentando provar uns para os outros quem está certo ou errado, tentando correr mais rápido pra ver quem vai "sentar no trono" e ditar as regras dessa vez.

E enquanto não tirarmos o amor da sombra continuaremos exatamente assim, oscilando entre o conflito de opostos, de um pólo ao outro, sempre unilaterais e nunca compreendendo a complementariedade entre eles...Não importa qual o pólo que estará "ganhando" no próximo século, o que importa é que nunca seremos inteiros.
Precisamos tirar o amor da sombra...
Começa de dentro de você.


quarta-feira, 24 de abril de 2019

O poder da mente e seus "filtros"


Hoje muito se fala sobre o poder da nossa mente e dos nossos pensamentos, já estamos cansados de ouvir dizer sobre como que os pensamentos podem atrair e criar situações em nossas vidas e existem diversas teorias do porquê  isso é real, desde teorias mais místicas como "a lei da atração", até algumas teorias da psicologia comportamental, e por fim estudos recentes da físicia quântica e neurociência que provam que realmente nossa mente direciona toda a nossa vida. Sabemos disso tudo, mas fica a questão: Como controlar nossos pensamentos? Porque às vezes é tão difícil controlar a nossa mente, pra onde ela "vai" ou "deixa de ir"? Porque tantas vezes nos sentimos escravos, praticamente presos, nesse redemoinho de imagens e falações incessantes? Afinal como estar no controle desse ser que às vezes parece outro ser, totalmente diferente de nós?


 Primeiro é importante compreendermos na teoria como esse processo realmente funciona. Eu não concordo totalmente com essa ideia mágica de lei de atração, por isso trago um embasamento por um olhar mais prático. Faça agora um exercício: Olhe por um momento à sua volta onde você estiver, repare tudo que está à sua volta, televisão, sofá, você provavelmente está sentado em uma cadeira, usando um computador, ou está lendo isso no seu celular na rua; se estiver na rua à sua volta tem carros, prédios, o chão que você pisa...tudo, absolutamente tudo isso foi criado por nós, seres humanos. Principalmente em uma cidade, praticamente nada é totalmente natural, casas, chão, carros, prédios, tudo foi criado por nós. E essa criação só aconteceu porque alguém algum dia teve uma idéia, planejou, procurou matéria prima e uma forma de colocar essa ideia na realidade e finalmente, criou. E o que é uma ideia, afinal? Um pensamento. O que é planejar? Pensar. Então como duvidamos que o pensamento cria a nossa realidade? Ele já criou! Tudo que existe à nossa volta foi criado por pensamentos. E ele está criando mais milhões de coisas o tempo todo. Desde de um artefato médico maravilhoso que salva vidas, até uma bomba atômica que pode destruir toda a humanidade. Esse é o poder criativo e destrutivo do nosso pensamento, da nossa mente, de nós mesmos.


 Trazendo para o nosso dia a dia é claro que isso se torna mais subjetivo e em menor escala, porém no fundo é a mesma coisa. Podemos criar o dia mais incrível das nossas vidas, ou o dia mais terrível de todos, e na maioria das vezes isso independe do mundo "externo". E esse é outro ponto importante: Afinal o que é o mundo externo? Segunda a física quântica atual, tudo que existe são informações, sinapses, troca de energia, e o nosso cérebro traduz todas essas informações para formar o que chamamos de realidade. Captamos a luz através dos nossos olhos, enviamos a informação para o nosso cérebro e ele codifica. Tudo que vemos e experimentamos são interpretações da nossa mente. Me parece óbvio que a forma que interpretamos vai depender, e muito, da forma como nos sentimos, e a forma como nos sentimos depende, e muito, da forma como pensamos. E por fim as nossas ações são sempre resultados de pensamentos, sentimentos e experiências, logo está tudo conectado nesse ciclo.

Por exemplo se eu tive um noite ruim, não dormi bem, tive pesadelos, acordo mal humorada, e já inicio meu dia com pensamentos ruins, que geram sentimentos desagradáveis, e assim eu começo a interpretar as experiências daquele dia a partir desse filtro. Provavelmente as mesmas experiências de outros dias terão um peso muito maior passando por esse filtro onde tudo está me parecendo difícil ou desagradável. E a partir daí minhas ações estarão resultando de todo esse cenário desagradável e pesado que estou vivendo neste dia. Tem gente que vive assim todos os dias! E é aí onde entram os hábitos. A pessoa se enfia tão profundamente nesse filtro, que não consegue mais ver além dele, vê somente através dele, e assim começa a pensar sempre dessa mesma forma, sentir dessa forma e consequentemente agir dessa forma. Toda a sua vida é vivida e criada através do filtro do "desagradável", "difícil" , "sofrido" e por aí vai...Como qualquer hábito, quanto mais alimentamos, mais ele se fortalece. O filtro vai se tornando cada vez mais espesso, denso, e a realidade daquela pessoa passa a ser indiscutivelmente daquela maneira.  


Com certeza esse será um mundo totalmente diferente do mundo  de uma outra pessoa que desde pequena aprendeu a ver a vida através do filtro "está tudo bem", "tudo é maravilhoso", "tudo vai dar certo". Mas será que esse filtro também não é nocivo? Muitas vezes sim, pois enquanto a outra pessoa está imersa no sofrimento e provavelmente se vitimizando, essa pessoa pode estar fugindo das dores e provavelmente idealizando e se iludindo. E o fato é que nenhum dos filtros condiz com a realidade. A realidade é feita de dores e alegrias, onde o que precisamos é aprender a lidar com ambas.

Então voltando aos pensamentos, sim eles criam o nosso mundo, a nossa vida, as nossas experiências, e o primeiro passo para aprender a direcioná-los é estar consciente deles. Todo esse processo que falei acima acontece muitas vezes de forma insconsciente, a maioria das pessoas nem percebe o filtro que está usando e como esse ciclo todo acontece. Então o primeiro questionamento é: Eu estou usando um filtro para ver e experimentar a vida? Qual o filtro que estou usando? Eu estou vendo as coisas como elas realmente são?

A meditação é uma ferramenta incrível (e na minha opinião o melhor caminho) para aprendermos a observar e parar de nos identificar com nossos pensamentos. Através da meditação compreendemos de forma prática, sentimos mesmo, que não somos nossos pensamentos. Existe um observador, existe uma consciência além deles, logo podemos sim direcioná-los. Com essa prática de distanciamento e observação constante, você começa a discernir o que é cada pensamento e quais são os mais freqüentes e constantes e aí é onde entra a parte terapêutica: Porque esse pensamento é constante? Ele tem uma origem? Ele me alimenta de alguma forma? Ou ele é uma crença, algo que eu ouvi minha vida toda e acreditei?


A partir desses e outros questionamentos (e aí é onde uma terapia pode ajudar muito, preferencialmente em conjunto com a meditação) você começa a entender a raiz desses pensamentos e começa também à colocá-los à prova: olhe para a realidade, sem filtros, isso é verdade? As coisas são sempre ruins? Ou sempre boas? Com certeza olhando para o presente, apara a realidade como ela realmente é, você perceberá que é até fácil quebrar esses padrões de pensamentos, porque não existe nenhuma verdade absoluta.

O mundo está sempre em movimento, a vida está sempre em mudança e transformação. E talvez esse seja o nosso maior medo. Nossa consciência racional, nosso ego, quer controlar tudo e a impermanência da realidade é algo que nos assusta e muito. Talvez esse seja o principal motivo pelo qual criamos nossos filtros, para nos convencer que existe um  padrão que nossa mente racional possa lidar e que, dessa maneira, temos o controle.  O medo de lidar com a realidade é o que nos faz criar filtros. Entramos numa constante ilusão, onde mentimos pra nós mesmos e através dessa mentira compreendemos e experimentamos uma vida de mentira. Está na hora de começarmos a viver de verdade! 

Não teremos o controle, não saberemos o que vai acontecer no próximo segundo, não saberemos quanto dura nem mesmo a existência da nossa identidade conforme conhecemos, pois esta acaba com a morte do corpo, que temos que encarar, pode acontecer a qualquer momento. Porém se continuarmos criando ilusões por medo, nunca reconheceremos a verdade: O agora, a nossa verdadeira natureza, o fluir do universo e do nosso ser com toda a beleza e todo o caos e destruição do qual eles são feitos. Não há felicidade maior do que aceitar, compreender e amar tudo isso.

Então, finalmente respondendo a pergunta do início do texto: A resposta não é estar no controle, mas sim abrir mão dele.



quarta-feira, 13 de março de 2019

E se não houver nada de errado com você?

Nós sempre acreditamos que existe algo de errado com a gente. Muitas vezes é isso que nos leva a procurar uma terapia, um psicólogo, ou até mesmo um psiquiatra, chegamos no consultório e já começamos a desabafar tudo que sentimos que está errado conosco. Nos culpamos, nos julgamos, nos pressionamos para corresponder à padrões, na maioria das vezes externos, e toda essa angústia crescente nos faz querer desesperadamente nos "consertar", como se fossemos uma máquina com um "parafuso a menos". Porém não somos máquinas, somos seres únicos, complexos, vivos, em eterno movimento e não existe nenhuma receita, nenhuma técnica e na verdade nenhum remédio que vá nos consertar magicamente, funcionando exatamente igual para todos. E aí eu te pergunto: E se não houver nada de errado com você?



Susan Henkels, uma psicoterapeuta americana com mais de 45 anos de trabalho clínico, escreveu um livro com esse título e eu assisti a palestra dela no TED Talks o que me inspirou para escrever esse texto, pois é algo que eu sempre pensei. (link para o vídeo da palestra no final do texto, porém infelizmente não tem legenda em português.) Susan traz esse questionamento e diz que depois de anos de experiência clínica ela mesma começou a questionar porque as pessoas estão sempre focando no que está errado com elas e sempre querendo se consertar, muitas vezes as pessoas baseiam suas vidas, suas ações e pensamentos em torno de uma lista de coisas que acreditam estar erradas com elas mesmas. Principalmente atualmente, que muitos diagnósticos são dados, às vezes de formas precicipitadas, as pessoas se apegam ao diagnóstico como se fosse definir seu modo de ser e justificam suas ações e pensamentos.


Carl Gustav Jung sempre teve um olhar diferente sobre as patologias, ele dizia que tudo que acontece com a gente faz parte do nosso processo de individuação, isto é, nosso processo de crescimento e amadurecimento psíquico e espiritual. Cada ser é um ser único, e cada ser vai passar pelas mesmas situações de forma totalmente diferente, absorvendo e lidando com aquilo cada um à sua maneira. E afinal porque um traço da sua personalidade deve ser visto como errado ou doente? Só porque ele é diferente da maioria? É claro que precisamos entender o que nos atrapalha e olhar para nossas limitações, para nossa sombra, mas precisamos olhar com acolhimento. E integrando esse aspecto à nossa totalidade, saberemos utilizar ele da melhor forma possível, muitas vezes o transformando numa ferramenta que pode nos auxiliar, ao invés de ser um obstáculo.

Susan conta em sua palestra sobre um roteirista de sucesso que conheceu e que questionou o seu livro. Ele disse pra ela; "É claro que tem algo de errado comigo, eu fui diagnosticado com Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD) quando era ainda criança." E Susan questionou: "E o que há de errado com isso?" Ele respondeu: "Eu sempre discordei de todo mundo, o que me fazia não ter muitos amigos e me tornei muito introspectivo." - "E o que há de errado em ser muito introspectivo?" - Ela questiona novamente. E por aí vai...Todas as justificativas que o homem traz, são comportamentos que saiem do padrão considerado "certo" pela sociedade, porém no final de todos os questionamentos de Susan (que são sempre perguntando "E qual o problema disso?") ele chega à conclusão que o seu "transtorno" proporcionou que ele fosse um roteirista tão bem sucedido. O fato dele ter se tornado uma pessoa mais introspectiva e ser sempre muito questionador e imaginativo, fez com que ele sempre criasse histórias incríveis e o direcionou para ser original  e bem sucedido nessa profissão.


O que estamos falando aqui é sobre aceitação de si mesmo. Não é sobre negar nossas dificuldades, mas sim compreender que todos tem alguma dificuldade e ninguém é melhor ou pior do que ninguém. Como já falei anteriormente somos seres únicos e não tem como comparar algo único. Cada um tem características maravilhosas e profundas dificuldades, o que precisamos fazer é olhar para nós mesmos e nos aceitar e nos amar. Não existe nada de errado em ser quem você é! E quanto mais você se aceita e se ama, mais você aprende a lidar com o que parece "errado" em si mesmo, entende que como em qualquer totalidade, os pólos se complementam e aquilo que parece errado pode ser utilizado junto com todas as suas qualidades, aquilo, seja o que for, pode se transformar em algo que trabalhará a seu favor.


O primeiro passo para essa mudança de ponto de vista é nos desapegarmos de uma vez por todas dos padrões que nos são impostos de fora. Não temos que seguir o que os outros pensam, não temos que seguir o que a sociedade ou a religião diz que é certo ou errado, temos que seguir apenas a nossa natureza. No momento em que formos verdadeiros com nós mesmos, acolhendo cada pedacinho nosso, saberemos utilizar todas as nossas características para o nosso próprio bem estar e o bem estar comum. A natureza é sábia e tende ao equlíbrio. Jung também dizia que fazemos um esforço enorme para nos desequilibrar, as doenças, principalmente emocionais, demandam uma energia enorme da nossa mente e do nosso corpo, porque saímos do nosso natural. Achamos que é preciso nos esforçar para "ficar bem" e na verdade é o contrário, o esforço é pra "ficar mal". O nosso natural é o equilíbrio. E esse equilíbrio é próprio de cada um.


Então toda vez que surgirem os pensamentos limitantes, os auto boicotes que nos colocam pra baixo, e toda aquela "ladainha" que falamos para nós mesmos de certo ou errado, pare e questione: "E se não houver nada de errado comigo?" Se aceite. Se ame. E a partir daí você será capaz de transformar a sombra em luz.


Vídeo da palestra de Susan: https://www.youtube.com/watch?v=gF5XztmijhQ